“Se te oferecerem uma prece, aceite.
A oração é o que de mais poderoso
uma pessoa pode te dar”.
Página 27 de “E, no princípio, ela veio”
Tão importante quanto manter as terapias em casa é contar com cuidadores(as) de confiança. No começo, eu tentei lidar sozinho com tudo o que o AVC nos impôs. A vontade de garantir o melhor para ela era tamanha que me convenci de que daria conta. Eu pensava também que meu modo de fazer era o único a suprir todas as novas necessidades da Terezinha causadas pelo derrame. Afinal, estranho nenhum conhecia mais do que eu a pessoa que me pariu nos afetos.
Ledo engano.
Não se tratava apenas de banhar, trocar fraldas e administrar remédios e dietas pela sonda, o que, convenhamos, já seria muita coisa. Sem andar e com o lado esquerdo inteiro paralisado, mamãe precisava de assistência integral. O AVC havia deixado sequelas graves e irreversíveis, mesmo com todo o investimento feito nas terapias, cuja função a partir de certo ponto passou a ser não a de Terezinha progredir ainda mais, dadas as impossibilidades, mas a de manutenção do que foi possível reabilitar nos seis primeiros meses, para não haver regressões.
Por isso, decidimos que ela teria suporte 24 horas. E eu admiti para dentro de mim, ainda no hospital, que sem ajuda eu não conseguiria. O tipo muito específico de afeto do qual mamãe carecia teria de ser dado também por outras pessoas. E ele veio justo de quem já estava conosco. Neide e Socorro, mãe e filha, escolheram permanecer com a gente mesmo diante de tamanho desafio em meio à dor de ver uma Terezinha feliz tornar-se uma senhorinha completamente dependente.
Eu bem me lembro. Estávamos no saguão do hospital. Não sabíamos, mas nos encaminhávamos pro fim da primeira internação quando chamei uma a uma para conversar e disse: “tudo vai mudar. A gente vai viver uma outra rotina, algo parecido com o que a gente tem vivido aqui, e, sinceramente, se vocês desejarem sair, nós vamos compreender”. Neide cuidava da casa e fazia companhia à mamãe de segunda a sexta-feira. Já Socorro ficava com a Terezinha aos sábados e domingos.
Uma rotina de afazeres domésticos e pessoais que levou as três criarem vínculos e sentimentos, de modo que não recebi com surpresa a recusa das duas quanto à possibilidade de seguirem outros rumos. Ambas permaneceriam e, assim como eu, aprenderiam de tudo para lidar com as precisões de mamãe.
– Eu não vou abandonar a Tetê na hora que ela mais precisa!
– Eu vou ficar com a Tetê até o fim!
Tetê. Era assim que as duas chamavam mamãe. E foi assim que durante os sete anos e dois meses nos quais cuidamos da Terezinha as coisas se deram: com Neide e Socorro tornando possível um fim de vida mais afetuoso para alguém que há tanto tempo, como a mulher que era ou pela profissional que foi, assemelhou-se à existência de tanta gente a quem estendeu a mão.


Inúmeras foram as vezes nas quais cheguei de mansinho, na intenção de fazer uma surpresa, e ser eu o surpreendido ao flagrar Socorro milimetricamente pintando flores brancas nas unhas dos pés de mamãe. Ou fazendo tranças nos cabelos dela. Ou vê-la espalhando, com todo o cuidado do mundo, hidratante em uma pele enrugada, fina tal qual papel, como quem cuida de uma louça muito, muito delicada. Tudo em um gesto respeitoso, quase casto, para não interromper o sono de quem ela também chamava de “minha rainha”.
Incontáveis foram as ocasiões nas quais interrompi alguma atividade em casa por ouvir gargalhadas da Neide vindas do quarto da Terezinha e, ao chegar lá, me deparei com mamãe atenta às encenações de uma mulher de meia-idade muito disposta a fazer nascer sorrisos nos outros por saber que a felicidade é uma tecnologia ancestral. Uma sabedoria.
Socorro, sobretudo, desenvolveu uma capacidade impressionante de entender o funcionamento do corpo de mamãe. Sabia com precisão quando ela tinha dor de cabeça, quando o espirro era sinal de gripe, quando o pigarro significava garganta inflamada, quando o mais discreto ruído de crepitação surgia na ausculta pulmonar (que também aprendera a fazer) e quando um movimento mais forte do diafragma adiantava uma alteração da frequência respiratória por causa de um derrame pleural iminente em um futuro bem próximo.
Era como se ela, ainda uma menina de 20 e poucos anos, conseguisse fazer previsões sobre mamãe. Sentia tanto, tanto, que se tornava instrumento de anunciação de qualquer sinal de a Terezinha adoecer ou minimamente se aproximar da morte. “A Tetê é meu amor”, ela tentava explicar. “A Socorro tenta viver com a Tetê o que não conseguiu viver com a avó”, arriscava Neide – que também transferia para aquela velhinha um pouco do que a vida não a permitiu fazer pela própria mãe, falecida muitos anos antes.
As duas davam a mamãe o tratamento recebido pela mulheres mais velhas nos reinos africanos mais prósperos. Empregavam no bem-estar dela o que tinham de mais importante: o próprio tempo. Não importava a hora, a pele da Terezinha estava sempre hidratada. Pouco valia se a data tinha importância ou era um dia de ordinariedades, ela era vestida sempre dos melhores perfumes. Cabelos brancos? Unhas carcomidas? Maçãs do rosto sem blush? Nem pensar!
Por terem convivido com mamãe antes do AVC, Neide e Socorro conheciam as vaidades dela. Da cor do batom (jamais vermelho!) ao vestido predileto. Da tinta favorita para o cabelo, gasto pelo tempo, ao esmalte. Da roupa ideal para o passeio ao penteado feito com toda delicadeza. As duas tinham o entendimento, tanto quanto eu, de que o derrame tornou a Terezinha uma pessoa “restrita ao leito” e não alguém sem passado ou sem vontades.
Ela, então, era consultada para tudo. Se chegasse a hora do banho e mamãe não fizesse um aceno positivo de cabeça, tudo ficava para depois. Os exercícios das sessões de fisioterapia eram todos comunicados com antecedência por Neide e Socorro (além da própria profissional). As manobras na fonoterapia também. Tudo para não assustar uma velhinha que o AVC forçou ser mais sensível ao toque, mas também como um pedido de autorização. Era como dizer: “Tetê, podemos?”. Porque o corpo dela ainda era dela. Ela era senhora do próprio tempo.
Nas atividades de rotina, o procedimento era o mesmo. “Amor, você fez xixi. A gente precisa trocar a fralda pra você não pegar uma infecção”, avisavam as cuidadoras . E ela assentia, sempre. Antes, porém, no começo, quando mamãe ainda falava, o alerta era outro. Ela sussurrava: “quero ir ao banheiro”. E Neide e Socorro diziam: “amor, você está de fralda. Pode fazer na fralda mesmo que eu troco quantas vezes for preciso. Eu tô aqui pra isso”. E mamãe, novamente, atendia. E as trocas acontecia mesmo quantas vezes eram necessárias.
Foi todo esse zelo que impediu mamãe de criar as temidas feridas que víamos em outras pacientes sempre que internávamos e nos deixavam tão sobressaltados. “Deus me livre de a Tetê criar escara. Seria sofrimento demais pra ela”, Neide antevia, deixando médicos e enfermeiros sempre positivamente surpresos pelo fato de um corpo idoso como aqule nunca ter sofrido com o excesso de pressão no contato com a cama em alguns pontos do corpo (e, assim, ter desenvolvido lesões).
Os profissionais elogiavam a forma como as cuidadoras tratavam mamãe. Elas se envaideciam. Era visível o empenho não haver agravamentos de quadro por imprudências ou imperícias. Mas Neide e Socorro ofereceram à Terezinha muito mais do que banhos, trocas de fraldas ou dietas por um tubo que ligava o nariz ao estômago. Deram um amor bonito de testemunhar. Não foram as únicas cuidadoras, mas as principais. Tanto que mamãe retribuía. Fazia questão. Dentro das limitações que passara a ter, devolvia olhares em agradecimento. Havia um carinho genuíno, de quem aprendeu a falar pelos olhos. E esse amor era o remédio mais eficaz dos nossos dias.
As duas, Neide e Socorro, me deram a segurança necessária para eu estar de coração tranquilo no trabalho. Se tivesse de viajar, iria sabendo que mamãe estava nas melhores mãos. Éramos, afinal, eu e elas, as únicas pessoas com as quais mamãe podia contar. Da compra do medicamento à companhia para o dia a dia. E não ter as duas ao meu lado seria tornar impossível minha convivência com o que o AVC fez de mamãe e do futuro que eu havia planejado para nós dois.
Não tenho dúvidas de que foi o amor das duas o motivo do prolongamento dos dias da Terezinha por aqui. O meu, de filho, já era uma certeza. Ela o teve uma vida inteira ali, sem esforço. O de Neide e o de Socorro foram conquistas que, tenho a certeza, supriram muitas vezes o vazio deixado pelos familiares desaparecidos, sobretudo os filhos, pelos quais mamãe tanto perguntou enquanto articulou palavras para fora do corpo.
Foi o amor delas duas, inclusive, decisivo para conseguirmos ler os silêncios nos quais o derrame nos colocou quando levou a capacidade de mamãe de falar. Presa dentro de si, cada vez mais derramada pra dentro do que era, ela só nos oferecia o olhar como horizonte. E era por ele que nós nos comunicávamos.


Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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