“A morte de mamãe será mais um acontecimento ordinário
em um dia ordinário do resto do mundo.
E escrever isso é quase querer me curar pelas palavras.
Escrever é uma cura pelos dizeres”.
Página 110 de “E, no princípio, ela veio”
Eu soube na festa dos meus 38 anos que mamãe morreria dali a pouco. Um amigo me revelou. Preto, que nem eu, e de terreiro, ele colocou cartas para mim. E elas falaram, mesmo sem eu perguntar sobre a Terezinha. Não deram precisão de data. Revelaram apenas que estava muito perto. Era 26 de outubro de 2024 e o AVC levaria a pessoa mais importante da minha vida dentro de pouco mais de um mês após tanto tempo como sobrevivente da virulência de um derrame em um corpo perto dos 100 anos (e tudo o que isso significa, para o bem e para o não tão bem).
Saber da proximidade da morte dela não me deixou aflito. Ao contrário. Eu recebi o alerta como um aviso para, de alguma forma, eu me preparar. E a primeira coisa que veio à mente foi uma célebre frase de mamãe. “Meu filho, eu preciso ir para que outros possam vir”, ela repetia, como um mantra, talvez até para se convencer da beleza daquela morbidez, sempre quando falávamos sobre morrer. Vinha sempre à tona quando algum conhecido virava finado.
Porém, existe um lugar silencioso onde ficam as pessoas que, diante de uma situação extrema, não sabem se pedem por uma intercessão divina ou se podem ser egoístas e desejar que tudo logo se acabe. Eu fiquei nele durante toda nossa última internação, mesmo ciente do alerta das cartas e mesmo com a tranquilidade de quem fez tudo o possível todas as vezes.
Mas o AVC, crônico e progressivo como sabíamos ser, havia gerado em mamãe uma nova condição cardíaca. Um quadro até então desconhecido para nós. Ela sofria de ritmo juncional. Crescido e descompassado, o órgão até funcionaria em certa normalidade ao ser medicado. Contudo, os médicos informaram, o fármaco teria efeitos prejudiciais sobre os rins, àquela altura já em função crítica. O sistema respiratório, os exames laboratoriais e de imagem indicaram, também estava sobrecarregado, aumentando o risco de infarto e levando a um funcionamento extremamente delicado de coração, rins e pulmões. Eram 4h32min de 14 de novembro de 2024 e eu acabara de ouvir de especialistas sobre um diagnóstico de sepse (espécie de infecção generalizada) de reversão quase impossível.
Eu não sabia o que pedir. Para ser franco, não sabia sequer se tinha este direito depois de sete anos e dois meses como testemunha da luta incessante e exaustiva de mamãe contra sequelas tão severas do derrame. Na dúvida, calado, pra dentro de mim, terminava por agradecer pela oportunidade de ela ter sobrevivido por tanto tempo diante de tantas adversidades. Nesse período, dezenas foram os derrames pleurais bilaterais e pericárdicos, as pneumonias, as broncoaspirações e as infecções. Cada uma, à sua forma, nos ensinou muito sobre vida, resiliência e morte.
À orixalidade, eu pedia que os caminhos de luz se abrissem para mamãe passar, fosse mesmo a hora de ela partir ou de por aqui permanecer por mais algum tempo. Ao deus e aos santos aos quais ela tanto recorria nos momentos de provação, eu rogava para a morte ser algo sereno (enquanto ela dormisse, de preferência) ou para nossa passagem por aquele leito ser a mais breve possível e voltarmos pra uma nova temporada em casa, com a Terezinha.
Minha sensação era a de que cada dia de estada naquele hospital me roubava um pouco de mim mesmo. Eu me reconhecia cada vez menos. No confronto direto com os efeitos do AVC, eles venciam. E eu me via na dualidade de minha solidão acabar e eu viver o que havia sonhado. Dualidade porque, para isso acontecer, mamãe necessariamente precisava morrer. Não havia como ser de outra forma, pois nos 14 anos nos quais moramos juntos e nos sete anos nos quais ela viveu entre uma maca e uma cadeira de rodas, eu precisei abdicar de muita coisa. De mim, até. Para depois ou nunca mais. E doía pensar nisso tudo. Ainda dói.



As palavras deitadas aqui, nestas reportagens em primeira pessoa e exatamente um mês após a morte de mamãe, são uma tentativa de cura, especialmente depois da complexa experiência que tivemos nos últimos 18 dias de internação, quando fizemos valer a vontade de mamãe sobre os procedimentos a serem adotados em caso de doença terminal. “Os cuidados paliativos não são para abandonar o paciente à própria sorte. Não são sobre deixar de morrer de qualquer jeito. Pelo contrário. São para humanizar um período da vida que já é naturalmente difícil. São para dar dignidade e conforto”, me explicou a médica Natália Feitosa Arrais Minete.
Eu tento escrever a respeito, racionalizo cada ideia, mas há dizeres que às vezes me abandonam. Acho que eles estão com medo, que nem eu estou, e se escondem enquanto me acostumo com tudo isso. Com o vazio que mamãe deixou na nossa casa. Dentro de mim, essas palavras de vez em quando precisam de descanso. E sugerem que eu deveria fazer o mesmo depois de viver tanto tempo em sobressalto.
“Morreu, morreu”, mamãe falava. E eu, como leigo que era, mas também como alguém que conhecia a Terezinha melhor do que qualquer médico, porque ainda acredito que é mesmo o cuidador, aquele que está na dor do dia a dia, o maior conhecedor de um paciente, eu só conseguia pensar em estratégias de sobrevivência para a pessoa que eu mais amava. Por isso, Terezinha, me perdoe pelos erros. Sim, eles aconteceram. Mas foram apenas pelo ímpeto do dever de retribuir. Pelo sentimento urgente urgentíssimo de acolher alguém que precisava.
O AVC de mamãe me ensinou que o tempo é o verdadeiro senhor de tudo e nenhum segundo a mais nos é permitido quando chega o fim. Até lá, porém, a gente deve fazer valer cada instante. Porque se a senhora, minha mãe, não desistiu, não se entregou, não reclamou nem esmoreceu, como poderia eu fazer isso. Afinal, tudo era sobre ela, não sobre mim.

Foi por isso que coloquei na mãozinha dela um terço semelhante ao que ela tanto debulhou. Um presente que uma mulher, uma vaqueira boiadeira, uma sertaneja, me deu para me proteger e eu a presenteei porque naquele momento era a Terezinha quem precisava se blindar de todo o mal e ser guiada pelo melhor dos caminhos. Algo para aliviar as angústias, dores e abandonos que tanto marcaram nossa peleja diária.
O AVC estreitou meus laços com mamãe. Fez eu me sentir afortunado por ser filho dela. Por ela ter me escolhido: aquele que dentre os nove que ela teve foi parido no coração. Nos afetos mais genuínos, que me dão a certeza de atravessar essa vida inteirinha sem sentir por outra pessoa o que sinto por ela. Uma necessidade de honrar o nome. De trilhar, eu próprio, um caminho digno da grandeza dela.
Nosso amor é um verbo que não tem passado.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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