“A educação é muito mais que uma aula nas escolas ou um assunto para um dia.
É um processo para dotar as pessoas de todos os instrumentos
que elas necessitam para viver com segurança e dignidade.”
Kofi Annan, diplomata de Gana,
ex-secretário-geral da ONU e Nobel da Paz.
“O aumento do número de estudantes negros nas universidades culminou na emergência de novas agendas de pesquisa. Nelas destacam-se: a importância de valorizar as trajetórias individuais e coletivas, as subjetividades, as narrativas na primeira pessoa”, explica a ativista, historiadora e professora Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Giovana Xavier, no artigo “Ciência, lugar de fala e mulheres negras na academia”, publicado em 21 de agosto de 2018.
O Ceará Criolo conversou com duas pesquisadoras professoras de Instituições de Ensino Superior no Ceará. Vamos conhecer um pouco das trajetórias acadêmicas e saber quais pesquisas desenvolvem atualmente.
O Brasil contava em 2017 – dado mais recente – com 219 doutoras pretas professoras em cursos de pós-graduação do Brasil, segundo o Censo da Educação Superior. Mulheres pretas com doutorado são apenas 0,4% do corpo docente na pós em todo o país. Quando somadas, as mulheres pretas e pardas com doutorado, que formam o grupo das negras, sequer chegavam a 3% do total de docentes. Algumas histórias de superação e muita dedicação estão fazendo essa porcentagem aumentar.
Professora adjunta no Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) desde 2018, Denise Ferreira da Costa Cruz é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Ela desenvolve uma pesquisa sobre cabelos para mulheres da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
“Pesquiso temas relacionados à estética e ainda tenho algumas pesquisas extra-acadêmicas, artísticas. Fui trabalhar em um projeto chamado “Deslocações”, que é sobre empregadas domésticas em São Paulo. Faço muitos trabalhos paralelos além do trabalho acadêmico”, pontua.
A trajetória de quem pensou em escolher Jornalismo no vestibular e acabou se apaixonando pela Antropologia carrega também uma história de superação. A Academia segue como um ambiente machista e racista, pois assim ainda é uma parte da sociedade. Então, a solidão acadêmica, quando se é a única pessoa negra, acaba sendo um ponto em comum em muitas trajetórias.
“Eu problematizava muito isso. Trabalhei com a Nilma Lino Gomes no projeto dela de ações afirmativas da UFMG e a gente discutia muito isso, sobre relacionamento inter-raciais, solidão acadêmica, a falta de representatividade negra nesses espaços. Então, é uma coisa que eu sempre fui muito consciente. Até porque eu fiz parte do Movimento Negro quando era criança. Minha mãe me apresentou o espaço do Movimento Negro e eu vendia bonecas negras, então já tinha uma discussão racial na minha família”, analisa.
A professora continua escrevendo a própria trajetória acadêmica. Produzindo e publicando artigos, como “O sacrifício do corpo: Categorias de conhecimento sobre o cabelo crespo que transitam entre o Brasil e Moçambique”, publicado na revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), e participando de outras pesquisas.
“A superação faz parte da trajetória de toda mulher negra. Se tem uma palavra que nos define é superação. Fiz o mestrado em uma instituição muito racista institucionalmente, vivi perrengues mais internos, de achar que tinha que ser a melhor, no sentido de fazer muito mais esforços, tinha que trabalhar mais, estudar mais, publicar mais. Fiquei adoecida psiquicamente. Então, de fato, superação é parte da nossa trajetória mesmo que a gente já tenha uma discussão racial e que a gente já esteja acostumada a vivenciar essa solidão da trajetória”, destaca Denise.
PAZ
Tatiana Paz, doutoranda em Educação na UFC e professora e vice-coordenadora do Neabi do campus Boa Viagem do IFCE, começou a estudar tecnologias móveis e autoria, queria entender como a tecnologia possibilitava as pessoas a construírem suas narrativas além da mídia tradicional.
Já no doutorado, o foco passou a ser a análise da construção de narrativas sobre cabelo crespo no Youtube. Nesse momento, começou a fazer a interface entre a história de vida como mulher negra e a pesquisa desenvolvida. E isso começou com um questionamento sobre o próprio cabelo.
Em 2013, a professora passou a vivenciar o processo de transição capilar e a se questionar o motivo de desde os dez anos fazer química no cabelo ou cortá-lo bem curto. Qual seria o motivo dessa relação tão ruim com a estética pessoal?
“Esse questionamento me reportou ao processo histórico da colonização. Fiz isso na Internet, procurando pessoas que estavam passando pelo momento de transição capilar. Aí foi o momento da minha descoberta de como o racismo nos afeta de diferentes formas, a ponto de a gente negar nossa estética. E isso me despertou o interesse em compreender também como a escola fica tão alheia a esse processo. É um processo que tem uma relação extremamente direta com a história do Brasil, mas a escola não conseguiu em nenhum momento conectar a história com a minha história de vida. Esse meu espanto me fez com que eu tivesse interesse de pensar as relações”, explica.
Durante o cotidiano da vida acadêmica, escrever, publicar, apresentar e participar de eventos científicos, a pesquisadora passou a observar um cenário curioso: a falta de mulheres negras em congressos e, quando presentes, a ausência de questões raciais. A partir daí, veio forte a lembrança da motivação para se tornar uma professora: a possibilidade de ajudar outras negras a entenderem seus lugares no mundo.
“Quando me reconheço mulher negra e olho pro meu processo formativo na universidade, tanto na graduação, mestrado e doutorado, há uma naturalização desse racismo institucional, porque nós não estudamos autores e autoras negras. Eles são raríssimos em sala de aula. Dentro da minha área de pesquisa, isso é mais forte. Dentro da Pedagogia, há esse apagamento de mulheres. Os grandes autores da Pedagogia celebrados são homens brancos. E dentro do campo da Educação e da Comunicação isso é mais forte ainda.”, destaca.
Dentro da pesquisa desenvolvida, a professora mostra como essas mulheres negras na Internet lidam com a dificuldade de compreender como os algoritimos que estão por trás da plataforma do YouTube restringem a visibilidade dos conteúdos produzidos por elas, por exemplo, com a temática racial. Não é por acaso.
“Essa discussão não interessa às empresas que financiam essa plataforma. É preciso falar sobre racismo também dentro da Internet. É importante que pesquisadores negros estejam em diferentes áreas do conhecimento, não sejam lidos sempre como pessoas que sempre vão pesquisar questões raciais. Eu acho que também existe esse reducionismo muitas vezes ao nosso trabalho, mas ao mesmo tempo a gente precisa afirmar também essas questões dentro da Academia, essa invisibilidade e esses processos que nos afetam na vida cotidiana”, destaca Tatiana.
SAIBA MAIS
A CPLP é formada por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, além de dezenove observadores associados.
TEXTO DE RAFAEL AYALA.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.