Iniciadas as tratativas para o fim da gestão de Roberto Cláudio (PDT) e começo do governo do prefeito eleito Sarto Nogueira (PDT), um aspecto da equipe de transição é de saltar aos olhos: todo o alto escalão do grupo é masculino e branco.
A foto oficial da reunião que aconteceu na tarde dessa quinta-feira (3/12) e resultou na composição formal da equipe, divulgada pela própria Prefeitura de Fortaleza, evidencia a completa ausência de mulheres e de pessoas negras.
A participação feminina num momento tão importante fica restrita a duas representantes em um grupo de apoio técnico composto por outros cinco servidores, todos homens. Indivíduos negros não figuram nem nesse colegiado de segundo escalão.
É preciso lembrar que quase 60% da população de Fortaleza é autodeclarada negra, conforme números oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Destaque-se também que a pauta racial foi ignorada por praticamente todos os candidatos a prefeito na campanha deste ano, inclusive por Sarto.
Representando a atual gestão, Sarto sequer cita a população negra nas propostas de Governo que enviou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um agravante irônico: ele pertence a um partido, o PDT, responsável pela apresentação (e articulação para aprovação) do Estatuto Municipal da Igualdade Racial, que na capital cearense nasce com uma década de atraso em relação à legislação federal.
Trocando em miúdos: o futuro prefeito de Fortaleza, um homem que já se declarou pardo e hoje se diz branco, ignorou uma das maiores conquistas do próprio partido. Algo que caberá a ele mesmo, Sarto, implementar – já que a vigência do Estatuto depende da regulamentação de uma série de leis e de colocar em prática diversos projetos que unem secretarias de forma interdisciplinar.
É grave. Por inúmeros motivos, mas principalmente porque não há como pensar qualquer política pública, em qualquer nível de execução, sem considerar o componente racial. E homem branco rico nenhum alcança a dimensão da racialização tanto quanto um homem negro minimamente racializado. Menos ainda em comparação com uma mulher negra racializada.
Assusta constatar que uma cidade do porte de Fortaleza, que se diz na vanguarda de muita coisa, ignora, desde a base, a existência de um povo tão fundamental. Pretos e pardos são esmagadora maioria dos trabalhadores dos tais serviços essenciais que não puderam parar nem no pico da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
São pretos e pardos também o perfil dominante também das regiões mais pobres do município. O favelês é dominado por eles. Por nós. Não por homens brancos empacotados em paletós de grife dentro de gabinetes com ar condicionado. Nós precisamos ser ouvidos. E mais: precisamos participar ativamente do processo de construção de Fortaleza.
Nós não queremos ser apenas consultados quando os projetos estiverem prontos. Queremos participar da construção deles. Se seremos nós os impactados por essas iniciativas, nada mais justo do que nós, negros e negras, opinarmos sobre como tudo deve se dar. Chega de subrepresentatividade! Chega de empurrar política pública goela abaixo!
A população deu um recado direto quando elegeu para o mandato dos próximos quatro anos uma Câmara Municipal composta majoritariamente por vereadores e vereadoras negros/as. Isso significa que nós reivindicamos o protagonismo que nos é devido, senhor prefeito em fim de mandato e senhor futuro prefeito!
Não basta ter um futuro vice-prefeito representante do universo acadêmico para fazer ponte com movimentos sociais. Ele continua sendo um homem branco privilegiado. A equipe de transição precisa de pessoas negras. Mulheres negras, de preferência. Porque são elas as mais esmagadas pelos modelos de gestão que vocês, homens brancos, historicamente implementam na nossa cidade. No mundo.
Não é aceitável uma equipe que, em essência, deveria ser diversa (porque diversa é a cidade) estar composta apenas por indivíduos que representam rigorosamente a mesma coisa. Ou seja: são diversos em nada. Mudam apenas de nome, de paletó e de bairro nobre onde moram. Além de, por óbvio, já serem figurinhas conhecidas que em nada dialogam com a tal “nova política” tão em moda ultimamente.
A equipe de transição só começa formalmente a trabalhar na próxima segunda-feira (7/12). Vamos lá, RC e Sarto! Dá tempo de mudar esse cenário! É possível praticar o antirracismo que todo político dito antibolsonarista, de esquerda (muito embora o PDT não o seja há algum tempo), progressista e sinceramente preocupado com as populações mais vulneráveis alardeou tanto no período eleitoral recém-terminado.
A conferir.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.