Larissa Luz brilhou em 2019. Esse ano foi possível constatar seu talento em várias frentes. Com Trovão, seu terceiro álbum, ela fala de afrofuturismo sem deixar de invocar a ancestralidade. De uma, Larissa vira três em Aya Bass, projeto onde se junta a Xênia França e Luedji Luna para homenagear cantoras baianas que vieram abrindo caminhos. Na pele de Elza Soares, angariou o prêmio Bibi Ferreira como melhor atriz em musicais. Ainda participou da gravação de Ismália, faixa que compõe o novo, e já aclamado, disco de Emicida.
A cantora esteve em Fortaleza para participar do festival WOW e, momentos antes de subir no palco do Centro Cultural Dragão do Mar, conversou com o Ceará Criolo sobre o progresso feminino, a política de extinção do povo preto, consciência negra e Elza Soares. Estivemos com uma mulher atenta e presente. Cada pergunta era cuidadosamente respondida. Para Luz, sucumbir ao sistema não é uma opção.
Ceará Criolo: Larissa, você veio para um evento que celebra as conquistas das mulheres. Na sua percepção, nós realmente avançamos?
Larissa Luz: Eu acho que a gente tem avançado muito ao longo dos anos. Eu vejo um caminho percorrido. Claro que também identifico que há muito a ser feito, estamos longe do ideal. Acho que a história foi muito agressiva, muito opressora conosco, mulheres, principalmente com as mulheres negras. Desfazer esse grande prejuízo é uma missão árdua. Demanda tempo e exercício, mas acho que avançamos. Vejo mais mulheres se identificando enquanto donas das suas próprias histórias, tomando as rédeas mesmo. Vejo mais mulheres gostando de si e se valorizando, se priorizando dentro das narrativas. Menos mulheres se deixando ser oprimidas por todo o sistema machista e pautado no patriarcado. Vejo a ideia de sororidade sendo colocada em prática de diversas formas.
Então, pra mim, isso tudo significa avanço. Andamos, estamos no caminho. A gente faz uma retrospectiva e vê como as mulheres eram tratadas há 50 anos, de lá pra cá muitas coisas foram conquistadas. Por isso eu fiz um disco chamado Território Conquistado. Porque olhei pro lado e vi o quanto percorremos e como nos colocamos no tempo de agora sem aceitar algumas coisas, né? E é daqui pra frente!
CC: A Cultura tem sofrido tanto cortes expressivos no orçamento do Governo Federal quanto ações vistas como censura pela classe artística. Recentemente, o jornalista Sérgio Nascimento de Camargo foi nomeado para presidir a Fundação Palmares. Ele é um homem negro e afirma que no Brasil existe um racismo “nutella” e que o Dia da Consciência Negra deveria ser extinto. Como não sucumbir diante de tal cenário?
LL: Essa é a pergunta que a gente se faz todo dia quando acorda, né? Antes de dar o primeiro passo, levantar e andar, como diz Emicida. Não está sendo fácil. Nunca foi, na verdade. Vivemos processos de agressão e a colonização foi um baque, o racismo é um crime perfeito e vem dando certo de lá pra cá. Ele é tão perfeito que faz um negro ter uma postura como essa nos tempos de hoje. O racismo é uma urgência a ser resolvida. E pra mim é um dos problemas mais complexos. E ser negro no Brasil é muito difícil. É ter que lidar com nossos próprios irmãos tendo posturas completamente contraditórias e tentar não condená-los. Por saber que eles também são vítimas e agem assim por conta de um sistema muito bem implantado aqui. É tão bem implantado que faz a gente ter ódio da gente. Faz a gente matar a gente. Faz a gente ter repudio pelo nosso próprio povo.
Acho que isso é mais uma estratégia, é mais um passo, é mais um golpe de um sistema que não aguentou ver um levante que vem acontecendo do povo negro. Eles viram (as pessoas de extrema direita, que fecham com o facismo) o quanto a gente estava tomando força, se levantando, reagindo, e fizeram um movimento avassalador de frear isso. Tudo faz parte dessa estratégia de “Vamos cortar pela raiz! Acabou essa brincadeira! Não vai rolar isso aí que vocês estão planejando do negro em ascensão, do negro descolonizado, do negro no topo […] a descolonização não vai acontecer”.
Então eles tomaram medidas sérias para frear esse processo. E, pra mim, essa fala, esse homem, esse corpo negro tomando essas atitudes, é tudo reflexo desse processo de nos frear. E tudo isso é pra gente sucumbir mesmo, desistir e deixar de acreditar. Pra isso não acontecer, pra não reagir de acordo com o projeto deles, acho que é pensar que somos agentes de uma transformação que precisa existir. É lembrar de Zumbi e Dandara e da injustiça que foi cometida de forma atroz contra nosso povo. É pensar que se a gente sucumbir, o nosso povo vai ser extinto, vai acabar. E é muito triste pensar que vamos acabar.
Se não nos juntarmos e não tivermos energia pra pegar o facão e ir pra lida, nosso povo vai acabar. Porque estamos morrendo brutalmente na favela, morrendo o tempo inteiro, sabe? E eles estão com planos maquiavélicos, inteligentes e fortes para nos destruir. A eugenia é um projeto que vem dando certo até hoje. Nosso povo tá sendo embranquecido, exterminado, violentado psicologicamente e fisicamente. E se não levantarmos e fizermos alguma coisa todos os dias, vamos acabar. Isso pra mim é o maior estímulo pra não desistir.
CC: Nesse contexto, o que é ter consciência negra?
LL: Eu vejo a consciência negra muito no lugar de autoidentificação e colocação, reposicionamento do negro na sociedade, que nos colocou no lugar de marginal, à margem, no sub, na base da pirâmide, sempre nos piores índices. Então, pra mim, quando se fala em consciência negra é tomar consciência de uma outra história que não nos foi contada e começar a se posicionar dentro desse meio em que a gente vive de uma outra forma, de uma outra maneira.
Eu recito um poema no show, da Victória Santa Cruz, que quando disseram pra ela “negra”, ela retrocedeu. Ela retrocede e esse é um movimento natural. Então, pra mim, consciência negra é quando você fala, como diz o poema “Enfim, reconheci. Enfim, já tenho a chave negra, né? Como soa lindo, mas que ritmo tem”. Aí, é na hora que ela percebe, aí é que o jogo vira. Porque quando a gente se percebe negro, quando percebe toda a riqueza que tem nossa cultura, quando entende que a gente foi um povo vilipendiado e que precisa reagir, ir em frente e dar de testa com todo esse movimento que nos oprime, aí as coisas começam a ter possibilidade de transformação. Pra mim, consciência negra é isso, que todos os negros e negras consigam acessar esse lugar para que possamos juntos acessar essa história.
CC: O que você traz em Trovão? O que você pretende com esse álbum?
LL: Eu tava pensando numa ligação entre ancestralidade e futurismo. Pensei no candomblé e tudo que ele envolve, não só do ponto de vista religioso, mas do ponto de vista social e cultural. Fomos distanciados da nossa cultura, dos nossos personagens, das nossas práticas, dos nossos rituais desde sempre, né? Foi um processo de colonização. Então eu tentei mergulhar nesse universo para trazer maior aproximação de tudo isso para uma leitura contemporânea, para que os jovens tivessem interesse em acessar isso, que parece tão antigo, né? Porque eu sei da importância que é ter referência, saber de onde veio e de onde partiu a sua história, entende? Quando a gente se distancia das nossas raízes, ficamos mais vulneráveis, um pouco mais frágeis. Viramos um povo fácil de ser dominado, de ser escravizado.
Então, pensei em trazer tudo isso numa leitura contemporânea, futurista. E, pra mim, o Trovão veio de diversas formas. Ele veio como um símbolo que remetia a Iansã, rainha dos mares e trovões, que é o orixá que está aqui na minha frente, tomando conta de tudo. Xangô também, que é justiceiro. Pra mim, é um elemento, um fator essencial nos dias de hoje, sempre nos faltou justiça. Nós vivemos e continuamos imersos num país onde a justiça é praticamente nula, ela não existe. É tudo injusto. Tudo desequilibrado, desproporcional. Então Xangô se fez necessário por esse lugar. Também é Trovão.
Pensei no Trovão como elemento da natureza. É um estrondo, um barulho que ecoa em muitos cantos ao mesmo tempo, muita gente ouve, né? Pensei na nossa voz, no nosso grito. Como é essencial a gente falar e se fazer ouvido por muitas pessoas em todos os cantos. Porque também o Trovão vem associado a uma energia, a uma descarga elétrica, que eu acho que também é necessário pra que a gente não entre nesse lugar de sucumbir, de desistir.
Então queria ter um disco que fosse uma descarga elétrica, que movimentasse, que acordasse as pessoas e dissesse “Vamos nessa! Levanta e ‘vumbora’, não desista, continua, segue, vai, vai”. Porque quanto mais tivermos pessoas no intuito de transformar, melhor. Então Trovão também é por isso, porque vem com a luz, com flashes e ilumina. Quando percebi a sincronia de todos esses elementos eu falei “É isso”.
CC: Como é vestir a pele da Mulher do Fim do Mundo? Como é ser Elza Soares?
LL: É transformador de diversas formas. Já sabia de muitas coisas, mas não tinha me aprofundando, também não sabia de muitas outras. E adentrar o mundo de Elza me fez perceber que a gente pode tudo. Tudo. Toda vez que eu tenho qualquer problema, eu penso “A gente pode”.
Porque o que ela fez foi realmente surreal. Uma mulher que, pra mim, é uma grande representação da mulher negra brasileira. Ela sofreu todos os tipos de violência possíveis. Violência doméstica, física, emocional, então foi um racismo e machismo em várias instâncias, classicismo. Vê-la hoje se reinventando a cada momento, gravando disco, ganhando prêmios, subindo e descendo, fazendo show nos Estados Unidos, fazendo show na Alemanha, pra gente que está adaptada a receber tantos “nãos”, pra mim, ela virou um grande “sim”.
Essa é mais uma estratégia pra não sucumbir: acessar essas pessoas, essas figuras. Ela é uma dessas figuras que, quando eu me lembro, penso em continuar. Foi isso que a história dela fez comigo, me fez querer ir além, me fez querer não desistir.
Fotos: Camila de Almeida

Publicitária. Movida por decibéis, apegada ao escurinho do cinema e trilha o aprendizado de ser uma mulher preta. Trabalhou em agências de Fortaleza e Salvador ao longo de 10 anos. Hoje responde pela Mídia na Set Comunicação, house da Educadora 7 de Setembro.