Quando um corpo negro, franzino e pouco curvado para a frente atravessou o pátio da Escola Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, na noite da última sexta-feira (7/7), pouca gente notou ser ele o motivo de tantas pessoas estarem ali. Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, tinha uma bolsa de algodão cru a tiracolo e, a despeito de uma plateia lotada de estranhos, falou como se estivesse rodeado de parentes do Quilombo Saco Curtume, no Piauí, de onde se origina, e amigos de um mundo inteiro por onde tem circulado.
Foi este homem que, tão logo apresentado dentro das formalidades cerimoniais de toda instituição, fez questão de quebrar qualquer protocolo ao levantar-se e bradar: “vivas!”. E todo mundo respondeu: “vivas!”. E dali em diante foram muitas as reflexões e ensinamentos saídos daquele corpo de 64 anos vestido numa calça preta e numa camiseta multicolorida cuja estampa era uma bicicleta. No pé, uma sandália sertaneja de couro.
Pelo senhor que é e pelas tantas caminhadas já feitas, Nego Bispo poderia sentar-se, discursar, receber os merecidos aplausos e seguir a vida. Não o fez. Em sinal de respeito ao público, ficou de pé todas as vezes nas quais falou. Ele olhava no olho e dizia: “eu nasci numa encruzilhada de muitas vidas”. E o povo aplaudia. “O presente é um interlocutor do passado e um locutor do futuro”. E mais gente aplaudia. “O calendário desse mundo tem relação com horários, não com o tempo”. E o que se ouvia eram espantos de adoração e barulhos de lápis e canetas rabiscando bloquinhos de anotação.
Povoado principalmente de juventudes, o pátio do Porto foi se enchendo de admirações conforme Nego Bispo oferecia palavras. E oralizava bonito, com o sarcasmo certo. Alguns excessos? Talvez. “Mas a gente quer apontar as contradições dos outros e não as nossas”, disparou. Tal qual quando falou que “nós estamos no apocalipse e a Bíblia não está mais dando conta”, e arrancou gargalhadas de muitos. Chamou Maquiavel e Karl Marx de “constituintes bíblicos”, e mais gente sorriu. Lançou mão de dois conceitos, contracolonial e cosmofobia, e deixou muitos boquiabertos.
“Querem nos pintar de coitados, mas nós somos o movimento contracolonial mais antigo desse país. Nos respeitem!”, bradou, arrancando aplausos. E também disse: “nós, quilombolas, nunca quisemos ser hegemônicos. Nós queremos consertar o nosso lugar. Mas tem gente que não conserta nem o próprio mundo e quer consertar o nosso. Eu aprendi que: quem nomina, domina. Por isso, fui pra escola pra traduzir a escrita pro pessoal da oralidade. E aprendi a traduzir e o sentimento de quem escreveu.”
Nego Bispo
Vozinha mansa e passo tão ligeiro quanto o pensamento e afiado quanto a língua, Nego Bispo disse que “tem o povo que sabe ler e tem o povo que sabe falar; nós somos o povo que sabe falar”. Em qualquer perspectiva, ele crê que os/as negras são o povo que sabe falar. E esse legado, ele acredita, precisa ser preservado. Talvez por isso, por essa devoção de respeitar a memória, convidou o neto, Jerônimo, para também dizer algo à plateia. E o garoto, tímido morador do sonho de ser médico, orgulhou-se da relação que mantém com a avó, lá no território quilombola piauiense, e, sobretudo, com o avô, nas andanças pelo mundo – de quem recebeu um amparo pelos olhos o tempo inteiro em que esteve diante de rostos tão atentos e tão desconhecidos.
Apesar de ter nome de título religioso, e de religião monoteísta, que cultua um só deus e ele tanto critica, Bispo não só defende que o saber não pode ser mercadoria. Ele pratica isso quando brada a quem quiser que “o PDF de um dos meus livros circula por aí e pode baixar, viu?” (para baixar, clique aqui). Faz isso porque, como ele mesmo disse, “a vida precisa de muitas poesias”. E é isso que os livros do Nego são. Poesia. Mas uma poesia que nos diz o que ele teve coragem de dizer sobre o Estado dentro de um equipamento do próprio Estado:
“Muitas vezes, quando o Estado entra pra resolver as coisas, complica. Porque ele trabalha na ótica da mercantilização. Então, nós temos que saquear o Estado! Porque tudo o que está no Estado é de todo mundo, mas só acessa quem pode [no sentido de quem tem poder]. E as favelas são territórios de luta contracolonialista em todos os seus aspectos. Então, no dia em que os quilombos e as favelas se unirem às aldeias, o asfalto vai derreter.”
Ao fim, pouco antes de receber o Ceará Criolo para uma entrevista exclusiva, Nego Bispo deu uma aula às centenas de pessoas que o ouviam no Porto Iracema das Artes: “nossa relação não é com a natureza. Nós somos a natureza. Nossa relação é com as vidas. E nossa relação com o tempo é cíclica: tem começo, meio e começo. Porque qualquer lugar da roda é começo.”
Confira a entrevista.
CEARÁ CRIOLO: Quando a gente fala em quilombo, a tendência do censo comum é remeter ao período de escravização e, quando muito, a Zumbi dos Palmares. A imagem que se tem é de um lugar de 500 anos atrás, que ficou no passado. Mas o Brasil tem atualmente mais de 4 mil comunidades remanescentes de quilombos. São 85 só aqui no Ceará. O que é, então, um quilombo hoje?
NEGO BISPO: Um quilombo, hoje em dia e sempre, é um espaço de reedição dos modos de vida originários. Um espaço de reedição dos modos de vida afro e também dos modos de vida indígena. Porque o quilombo não foi composto só pelos africanos. Foi composto por uma confluência entre os africanos e os povos originários daqui. Eles contribuindo com informações e a gente catando essas informações e pondo em prática. Então, o quilombo continua sendo isso: esse espaço de reedição dos modos de vida.
CEARÁ CRIOLO: Pro mundo que a gente tem hoje e o senhor critica por ser eurocristão, monoteístas e capitalista, que sempre pensa na mercadoria, qual papel estratégico cumpre o quilombo de onde o senhor vem, por exemplo?
NEGO BISPO: Tanto os quilombos como as aldeias como a capoeira como os terreiros, os nossos modos de vida estão pautando a necessidade de serem reconhecidos e respeitados, sob pena de, em isso não acontecendo, o mundo entrar em colapso total. Porque nós nunca nos desconectamos da natureza. Nós somos natureza. Nós nunca nos desconectamos do cosmo. Nós somos cosmo. Então, a mensagem que os quilombos passam hoje é de que esses modos de vida, esses saberes, precisam ser cada vez mais reeditados e reconhecidos.
CEARÁ CRIOLO: Nos últimos anos, a gente não teve esse reconhecimento com o governo Bolsonaro e mesmo com o que veio antes dele. Com o governo Lula, o senhor acha que tende a melhorar? A gente já teve logo no começo da gestão alguns reconhecimentos de territórios quilombolas, inclusive aqui no Ceará…
NEGO BISPO: Eu acho que no governo de Bolsonaro nós voltamos muito mais pra nossa organização interna. Foi um momento de muita reflexão. E foi um momento também de queda de máscaras. Porque Bolsonaro, literalmente, não usou máscara. Quer dizer: ele não fez, mas ele disse que não ia fazer. Então, ele não enganou ninguém. Cumpriu o que prometeu. Então, a questão não é a vinda de Lula. A questão é como nós vamos tratar Lula nessa vinda dele. Uma coisa é como nós tratamos Lula no primeiro mandato. Outra coisa é como vamos tratar Lula agora. Porque agora nós vamos tratar Lula no papo reto, sem intermediário. Essa é a grande diferença.
CEARÁ CRIOLO: Diante disso, o que o senhor espera que aconteça?
NEGO BISPO: O que vai acontecer é o que está acontecendo agora. Nós estamos pautando a sociedade. Todos os debates que os movimentos sociais estão praticando hoje estão usando as aldeias e os quilombos como referência. Nós somos pauta. E isso vai fazer com que seja qual for o governo nós vamos ser tratados agora com um pouquinho mais de respeito.
CEARÁ CRIOLO: Até porque novos espaços estão sendo ocupados pelo movimento quilombola, não é? O senhor mesmo é prova disso quando é, como de fato foi, convidado pra dar aula na USP. Se a luta é grande, e é, também se tem chegado a locais nunca imaginados. Quando o senhor olha pra sua infância, qual é o primeiro ensinamento que lembra?
NEGO BISPO: Olha, a primeira coisa que eu me lembro é: “a terra dá, a terra quer”. Mas também: “a vasilha de dar é a mesma de receber”. E uma que é fantástica: “pedir não é feio. Pedir é ruim. Então, se você perceber que uma pessoa vai pedir, se antecipe e ofereça. Não espere ela ter que passar por isso”. Outra coisa: “tudo que se mede é pouco.”
CEARÁ CRIOLO: É a isso que o senhor se refere quando fala em alternativas de sociabilidade e preservar os saberes dos povos tradicionais?
NEGO BISPO: É exatamente sobre isso.
CEARÁ CRIOLO: Mas na nossa cultura de hoje tem espaço pra isso?
NEGO BISPO: Tá acontecendo. A maneira como eu sou tratado hoje no Brasil inteiro significa dizer que essas palavras estão germinando. Estão germinando e estão sendo bem cuidadas.
CEARÁ CRIOLO: E o senhor acha isso positivo? Pergunto porque a gente tem ouvido muito na televisão, em novela, em filme, em livro, na academia etc muita gente repetindo o “sou porque nós somos”, que é a base da filosofia Ubuntu, de origem africana. Essa popularização só é positiva? Ou existe um lado que não é positivo?
Ela tem vários lados, como tudo na vida. Agora, cabe a nós saber o que nós vamos explorar de tudo isso. A questão não está no outro. A questão está em nós. Um facão é sempre um facão. Se eu usar ele na roça, ele é um instrumento de trabalho. Se eu usar ele na briga, ele é uma arma. E ele não é culpado por nada disso. A questão está em nós. E não no outro. No uso que a gente faz dele.
Nego Bispo
CEARÁ CRIOLO: Na sua fala aqui no Porto Iracema, o senhor disse repetidas vezes sobre a necessidade de saquearmos o Estado. Com as coisas postas como estão hoje, existe alguma saída pra gente mudar o mundo pelo Estado?
NEGO BISPO: A gente não precisa mudar o mundo. A gente precisa mudar o nosso mundo. E o nosso mundo não muda pelo Estado apenas. Mas também. Desde que a gente seja eficiente nessa sabotagem.
CEARÁ CRIOLO: O senhor apresenta o movimento contracolonial como algo de origem quilombola e explica que é contracolonial porque, como o senhor não foi colonizado, luta para continuar não sendo. Mas a gente tem hoje muitos outros conceitos em disputa dentro e fora dos movimentos sociais: tem quem fale em descolonizar, tem quem fale em decolonizar, tem quem fale em anticolonizar… No meio disso tudo, o que é que se tem efetivamente de prática?
NEGO BISPO: A crítica ao colonialismo, ela, por si só, já é muito necessária. Então, se é através do decolonial, do descolonial, do anticolonial ou do contracolonial, se as pessoas estão focando no colonialismo e reconhecendo o colonialismo como um vírus de muitas mazelas que nós temos enfrentado, isso já é muita coisa.
CEARÁ CRIOLO: No seu novo livro, “A terra dá, a terra quer”, o senhor defende já no primeiro capítulo, chamado “Semear as Palavras”, a importância de denominar, de dar nome. O senhor acredita que é a partir da linguagem que nasce o racismo?
NEGO BISPO: Não. Isso aí nasce das escrituras. Mais das escrituras do que das palavras. Das escrituras palavreadas e não das palavras escrituradas. Toda essa opressão é da cultura escrita, não da oralidade. Porque a cultura escrita quer ser hegemônica. Então, ela é mono. Ela não reconhece as vidas. E a oralidade é o oposto disso.
CEARÁ CRIOLO: Há quem diga que a gente, enquanto ser, nasce da oralidade. Considerando que isso seja verdade, quais palavras pariram o Nego Bispo?
NEGO BISPO: Olha…(fica segundos em silêncio, pensando)…acho que são algumas que eu já disse aqui no começo, como “a terra dá, a terra quer”, “a vasilha que dá é a mesma que recebe”, “não é feio pedir; é feio deixar pedir” e “tudo que se mede é pouco”. Mas mais uma: “quem tem dois, tem um e quem tem um não tem nenhum”. Tudo isso eu ouvi da minha avó. Foi a ancestralidade quem me pariu.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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