Estou à beira dos 33 anos. “Um terço do caminho”, um amigo me disse certo dia. “Idade de Cristo”, ouço sempre. “O tempo astral da mudança”, uma amiga ensinou meses atrás. Lembrei disso tudo e constatei o bocado de coisa que atravessei até aqui. E que formam quem sou hoje. Pro bem e pro não tão bem.
Não, não estou no inferno pré-aniversário. Só me peguei pensando e fiz uma listinha mental. Fui xingado incontáveis vezes, apanhei da Polícia, recebi voz de prisão de delegado, levei pecha de ladrão, me privaram de viver uma experiência, a mulher mudou de calçada ao me ver, o porteiro perguntou “vai entregar o quê?” (e eu era convidado da festa), minha chefe duvidou da minha capacidade…
Tenho em mim um monte de sentimento que só nasce no peito de quem é negro. Sim, há sentimentos que só nascem no povo preto. Porque só quem é preto passa pelo o que eu passei (e muito mais). E nenhum desses sentimentos é bom. E só quem é negro entende o peso de cada um.
Só a gente sabe o que é ouvir a chefia te comparar a um traficante (negro, claro; como se todos nós fôssemos iguais) diante de todos os colegas de trabalho. Nenhuma outra cor entende o que é lidar com o vendedor te acusando de roubo “porque você não tem cara de quem compra livro” pelo simples fato de a tua pele ser escura. Etnia outra qualquer nem sonha com a violência que é ser parado pela Polícia numa rua escura e sentir a quentura do cassetete açoitando o couro das costas “porque tu é um dos neguim lá do morro.”
Lembrei disso tudo, de um tanto de outras coisas mais e me dei conta do quanto estou cansado. Exausto seria o termo mais condizente. Sem exageros. Nunca estive tão estafado na vida. E ter que dizer o óbvio o tempo todo é o que mais me suga as energias. Meu corpo dói. Meu juízo, então, rasteja. Sinto como se tivesse levado uma surra.
Claro que parte do meu cansaço se deve à esquizofrenia coletiva decorrente da atual conjuntura política nacional. Os últimos oito meses foram os mais intensos de todos nós. Cada dia uma derrota diferente. Uma porrada diferente. Um desmonte diferente. Uma mentira diferente. Tudo isso acaba com qualquer um. Ainda mais sabendo que é só o começo.
Mas ruim mesmo é gastar energia explicando que não, não pareço com o traficante só por ele ser negro, “querida” chefe. Não, não estou roubando livros, senhor vendedor; estou comprando-os. Não, não sou “neguim lá do morro”, “dotô” policial – e, mesmo que fosse, você não tinha o direito de me espancar, como me espancou.
Cada letra que usei para dizer essas obviedades poderia estar noutros contextos, mudando um monte de vidas para melhor. Desde que decidi, um ano e meio atrás, me especializar em Literatura e tê-la como uma rotina, um estilo de vida, um jeito único de enxergar o mundo, tenho feito o exercício de como palavras mudam destinos. Mudaram o meu.
Sou um negro, gay, nordestino e morador de periferia cheio de privilégios. Sou ciente disso. E, ainda assim, sou esmagado pelo preconceito todos os dias da minha vida. É o que me faz pensar em como os negros que não tiveram acesso a uma educação de qualidade, que não se formaram, que só levaram porrada da vida encaram cada rasteira dessa que a gente leva o tempo todo.
Francamente, não sei se consigo me reinventar ainda tantas e tantas vezes para lidar com tantas e tantas coisas ao mesmo tempo me puxando pra baixo. Nos puxando para o fundo do poço! A verdade, por mais linda que seja a militância antirracista da qual faço parte há poucos meses, é que a gente é estraçalhado o tempo todo. E isso acaba com qualquer chance de você se olhar no espelho e se sentir capaz. Pesa. Enterra a gente sem a gente ter morrido.
E o pior de tudo é saber que vai ser assim até o fim. Se duvidar, até depois da morte – já que tantas vezes a gente desencarna e, a depender do contexto do óbito, vão matar a gente outra vez eliminando qualquer vestígio de honra e luta que a gente tenha tido.
Acho que minha nova resistência vai ser por elas. Pelas palavras. Foram elas que me formaram. São elas quem me carregam agora. É com elas que tenho andado de mãos dadas. E espero ser por elas que eu venha a me despedir dentro de alguns bons anos bem vividos.
Decidi escrever um livro. Os mais próximos sabem da existência de um que tenho feito para minha mãe. Não é esse. Sequer lancei o primeiro e já quero outro. Noutro gênero. Saio da crônica para o universo infanto-juvenil. Decidi escrever para jovens negros. Para crianças pretas.
Quero que elas saibam que é preciso ter orgulho da própria cor. Que é possível ser alguém mesmo estando num país que luta para nos apagar da história. Que as letras formam o caminho mais invencível de todos os caminhos possíveis. Que o brilho de todos nós está não do lado de fora e sim dentro de cada um. Que precisamos nos unir. E que é urgente reivindicarmos nossa parte, nosso lugar no mundo.
Escrever sobre isso é como ganhar um pouco mais de energia pra lidar com os absurdos da rotina e de uma era onde cor de pele e cor de amor determina, mais do que nunca, o futuro de todos nós. Uma era que, sim, cansa, mas que também exige da gente um pouco mais de esforço e luta.
Então, Francisco, o protagonista do tal livro infantil que estou escrevendo, eu te peço: me pega pela mão, me oferece um afago e me leva para onde todos tenhamos peito suficiente para levar ainda bem mais porrada do que já suportamos.
Por ora, por aqui, tá difícil viver.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.