O grande tribunal da Internet foi implacável em condenar o artigo racista de Lilia Schwarcz para a Folha de São Paulo. Ok, a antropóloga errou. Mas e o jornal? Não vai mesmo ser corresponsabilizado pelo absurdo da publicação? Precisamos falar sobre isso.
A Folha de São Paulo é nada menos que o periódico mais influente do Brasil. São quase 100 anos de existência. O tom político é explícito e forte o para derrubar ministros de Estado e já afetou trajetórias de muitas figuras públicas. Não falamos, portanto, de um jornaleco. Diante disso, é preciso destacar dois aspectos.
O primeiro é: um veículo cujo slogan é “O jornal do futuro” estar disposto a pautar a repercussão social de Black is King com o intuito escancarado de desqualificar um trabalho inteiramente voltado à ressignificação da história do povo negro. Um trabalho que propõe exatamente um outro futuro. O afrofuturo. Com um agravante: esse trabalho ter sido idealizado, produzido e protagonizado por uma mulher negra.
Lilia não escreveu o artigo por livre demanda. Não se trata de uma manifestação espontânea de opinião, digo. Ela foi convidada pela Folha. Ou seja: a pauta nasceu dentro da redação do jornal. Uma pauta para rebaixar uma mulher negra militante nascendo dentro da redação do jornal mais importante e de maior peso político de um dos maiores (e mais negros) países do mundo. Percebem o absurdo e ousadia? O racismo é ousado pela certeza do esquecimento e impunibilidade em quase todos os casos.
Por óbvio que a antropóloga tem parcela de culpa no processo, como ela mesma admitiu em postagem no Instagram. O texto foi escrito por ela. É o nome dela que está lá. E está sucedido por um currículo invejável, também lá posto para respaldar cada palavra contra Beyoncé. Mas é fundamental que exponhamos: foi O JORNAL quem procurou Lilia – conforme também revelou a pesquisadora em rede social. E isso é muito, muito grave. Porque não se trata de abrir espaço na mais importante mídia tradicional brasileira para questionar o método de Black is king. O artigo foi pensado, proposto, redigido e publicado para questionar o mérito de Black is king. Para atacar, como sentencia já o título, a “glamourização da negritude” – numa estratégia cretina de decretar aos pretos tudo menos o glamour. Como se preto só pudesse ser miserável e faminto.
Isso me leva ao segundo aspecto a ser destacado: a edição. O que Lilia denunciou na nota publicada em seus perfis nas redes sociais é muito verdade. Título e subtítulo são escolha do jornalista que, como chamamos no jargão, “fecha a página”. É o editor quem dá a cara final do texto que chega ao leitor. E quase sempre isso implica em optar por dizeres impactantes, que chamem a atenção do público (e, no caso da desgraça das redes sociais, rendam likes e compartilhamentos). Mas isso não pode nunca justificar o absurdo que se deu no caso de Lilia.
O produto final entregue ao leitor foi racista. E racismo continua sendo racismo mesmo que seu ato originário seja ofício de uma profissão. Assim como Lilia continua sendo branca mesmo tendo dedicado, como dedicou, uma vida inteira ao estudo do racismo e nunca conhecerá socialmente o peso nefasto dele. Da mesma forma que Beyoncé continua sendo preta mesmo tendo milhões na conta bancária, pois o status de milionária não a impede de ser chamada de macaca, como muitas vezes ela, a filha e o marido são, ou de um jornal de circulação e alcance estratosféricos publicar conteúdo criticando sua militância, como a Folha fez.
Algumas coisas não mudam. Os fluxos jornalísticos, por exemplo. Edição de texto existe desde os parcos tempos da primeira máquina de rodar jornal. É uma etapa necessária. Um tecnicismo essencial. Sem ele, corre-se o risco de o texto ser publicado com erros (de português, inclusive) e inconsistências de apuração. No entanto, se essa edição é feita de forma desleixada, como não creio que seja na Folha, ou politicamente enviesada, como creio que tenha sido, diante das circunstâncias e do que Lilia denunciou, é inaceitável o jornal silenciar. Empurra, com isso, toda a responsabilidade de um artigo criminoso para a autora (que, repito foi procurada pela empresa para emitir opinião, e não o contrário (cenário no qual ambas as partes também poderiam ser responsabilizadas)).

Com 2,3 milhões de seguidores somente no Instagram, a Folha até o momento não publicou uma linha sequer de satisfação ao leitor, aos movimentos feministas e aos movimentos negros revoltados com o viés racista do artigo. O máximo que fez foi visibilizar texto de Djamila Ribeiro, colunista fixa do jornal, dias depois comentando o assunto e desconstruindo os argumentos frágeis (e brancos) de Lilia. Importante? Sim. Mas que nem de longe compara-se ao peso de um posicionamento formal do jornal, mesmo que por um simples post, quanto à linha editorial escolhida (sim, porque foi uma escolha) para o assunto.
Não se trata aqui de exigir da Folha de São Paulo um pedido de desculpas a Beyoncé. O debate não é esse. Na verdade, seria infantil, se assim o colocasse. Além do que Beyoncé provavelmente sequer sabe da existência do jornal. Tem, digamos, preocupações mais globais – como colher as reações positivas do seu próprio povo (que, enfim, se enxerga retratado honestamente numa superprodução de música/cinema) e da crítica especializada. A discussão é maior. A Folha, mais uma vez, deve desculpas ao povo brasileiro, majoritariamente autodeclarado negro.
Os processos de comunicação precisam descer do pedestal da elite branca, dona de quase todos os conglomerados de imprensa do país. É urgente que a questão étnica sente nas cadeiras das redações e troque dedos e mais dedos de proza com quem todo dia colabora para a formação do imaginário coletivo. Nós, jornalistas, ajudamos a compor o senso comum sobre tudo e todos, incluindo o povo negro. A responsabilidade de historicamente o povo negro ser associado ao que é ruim, ao que não presta, ao que é promíscuo, ao que é violento e a tudo o mais de negativo É NOSSA TAMBÉM.
Não é normal que qualquer veículo de comunicação, ainda mais ele sendo o maior e mais influente do Brasil, viabilizar de forma intencional, escancarada e desavergonhada uma pauta com o único propósito de achincalhar um trabalho de reparação de séculos de uma construção ideária cruel sobre um povo tão massacrado. Massacrado e morto pelas mãos do Estado, fisicamente, e do jornalismo, subjetivamente, quando só reforça a imagem do preto bandido, violento e miserável.
Urge que o debate étnico sente também nos bancos acadêmicos. As faculdades de comunicação não podem mais ignorar a necessidade de formarmos jornalistas e publicitários verdadeiramente preocupados com o respeito às diferenças e às particularidades dos indivíduos. E, a preço de hoje, as matrizes curriculares passam longe disso. A preocupação está em formar técnicos para trabalhos burocráticos (e lucrativos). Discutir negritude em sala de aula muitas vezes depende da boa vontade de professores simpatizantes da causa ou da passagem de alguma efeméride. Ou seja: se não for o 13 de maio ou o 20 de novembro, quando muito, o assunto esfria ou mesmo nem existe (tal qual é nos jornais).
Já disse isso noutra oportunidade: ser antirracista é um estilo de vida, não apenas uma tag de rede social. E isso só vai ser compreendido quando começarmos a falar sobre antirracismo na base. Por base, entenda: dentro de casa e dentro das instituições de ensino. Neste caso em específico, também dentro da Folha. Para quem se diz “Um jornal a serviço do Brasil”, ainda há muito o que avançar em algo tão elementar: o bom senso.
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PS: para não dizer que não falei de flores, parabenizo à Folha de São Paulo pela inclusão do professor Silvio Almeida no rol de colunistas. O jornal ganha muitíssimo em ter um negro tão qualificado entre os emissores de opinião. Andamos carentes de quem pensa e projeta uma agenda pública verdadeiramente preocupada com a coletividade.
PS 2: não viu NADA de Black is king? Te dou uma mãozinha.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.